Violências invisibilizadas: Quando o Estado passa a ser o agente da violência


5º TEXTO  DA SÉRIE DE ESTUDOS DE CASOS SOBRE A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA NO MARANHÃO


 Artenira da Silva e Silva1
 Amanda Madureira 2
 Almudena Garcia Manso 3

 A violência contra as mulheres só passa a existir no mundo fático quando reconhecida como um problema social, sobre o qual é possível legislar. Quando demarcada em uma tecnología de poder, em um marco legislativo, por exemplo, o problema passa a de fato existir (Foucault, op. cit). Ocorre que, no que diz respeito à Lei Maria da Penha, as violências que sujeitam a mulher vão além das que podem ser tipificadas no código penal. Considere-se que mesmo as violências não tipificadas igualmente contribuem para coibir os direitos e o reconhecimento público de mulheres. Cumpre destacar que em um contexto de violação de direitos humanos em ambiente doméstico é difícil valorar violências maiores ou menores, uma vez que todas estão inseridas em uma cadeia cíclica e temporalmente estabelecida, amordaçando, tolhendo, controlando e deshumanizando a existência da vítima. As violências invisibilizadas ou micromachistas possuem grande poder de dano porque acontecem comumente acobertadas pela repetição cotidiana, pela normalidade e por vezes por passarem desapercebidas de quem as pratica e de até de quem as sofre. A sua existência reside nas múltiplas oportunidades cotidianas delas serem exercidas, especialmente nos espaços privados (Llorente, 2014). Ressaltar algumas “qualidades naturais” da mulher como ser cuidadora, ser bela, ser sensível e ser emotiva acabam por deixá-la suscetível a uma série de restrições impostas de comportamentos, dificultando inclusive com que ela se realize profissionalmente plenamente (Gallego, 2010). Assim, fica garantido o confinamento da mulher ao lar e à maternidade, estando ela menos disponível para exercer poder fora do ambiente doméstico. “Los micromachismos comprenden un amplio abanico de maniobras interpersonales que impregnan los comportamientos masculinos en lo cotidiano (…) Los micromachismos son microabusos y microviolencias que procuran que el varón mantenga su propia posición de género (…) Están en la base y son el caldo de cultivo de las demás formas de violencia” (Bonino, 1995: 4). O desafio posto é de identificar estas microviolências machistas, especialmente aquelas exercidas institucionalmente para que se descortinem e se visibilizem estas estratégias sutis e comuns de controle patriarcal. Os micromachismos podem ser identificados no cotidiano de vários espaços sociais. No entanto, tomam mais vulto, adquirindo maior poder de consequência, quando institucionalizados no Sistema de Justiça, dificultando que se punam inclusive as macroviolências contra mulheres. Os micromachismos dos operadores do Sistema de Justiça, sejam os mesmos homens ou mulhres, estão institucionalmente materializados em documentos produzidos no curso dos processos que teoricamente deveriam visar punir a violência de gênero. Constituem estratégias de controle não explícitas, logo menos visíveis e por isto mesmo muito mais danosas no que diz respeito a perpetuar a desvalorização da mulher. Os micromachismos seguem camuflados, invisibilizados, normalizados, por serem tolerados e reproduzidos, constituindo a forma mais usual e aceita de comportarse. Em sua maioria estão legitimados pela sociedade e pela cultura, configurando práticas de dominação masculina na vida cotidiana. Comumente extrapolam o ambiente doméstico e se fazem presentes inclusive institucionalmente. Exemplos de micromachismos cotidianos são: interromper quando uma mulher fala, comumente impedindo-a de se expressar, controlar diretamente contatos e horários da mulher, qualificar seu valor por sua forma de estar vestida ou maquiada ou ainda por seu modo de se comportar sexualmente, minimizar qualquer violência por ela sofrida, quer ignorando-a quer rotulando-a como “menor, irrelevante ou pouco importante” ou ainda rotular de louco ou histérico qualquer comportamento de questionamento de realidade ou de “verdades” patriarcais que uma mulher possa esboçar. Observe-se que estes comportamentos abusivos podem ser classificados segundo Bonino em quatro categorías: utilitários, encobertos, de crise e coercitivos (1995, 2005). Os três primeiros acontecem principalmente na esfera privada, conforme pode-se avaliar pela tabela que se segue, mas o último pode ser exercido também dentro do Sistema de Justiça.
 Observe-se que a categoria coercitiva de micromachismo está totalmente ancorada nas anteriores enquanto categorias internalizadas e sedimentadas ao longo do processo de socialização, constitutivo da identidade humana ocidental coletiva ou individual. Em sua modalidade institucionalizada esta categoria de microviolência torna-se evidenciada quando se cobra da mulher determinados comportamentos configurados como sexistas: deve ser a mais fléxivel, a mais afetiva, a mais cordata, a mais dócil, a mais recatada, a mais introspectiva, a mais frágil, logo, a mais sujeitável e subordinada. Evidencia-se então o risco deste tipo de violência quando exercido no Sistema de Justiça em apuração de qualquer tipo de violência contra a mulher. O risco é de transformar vítima em ré e de se perpetuar o ciclo de violência que se deveria punir, prevenir e erradicar, conforme compromisso estabelecido pelo Estado Brasileiro perante a sociedade internacional.


1 Pós doutora em Psicologia e Educação pela Universidade do Porto. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Federal do Maranhão, Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Departamento de Saúde Pública e do Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora de linha de pesquisa do Observatório Ibero Americano de Saúde e Cidadania e coordenadora do Observatorium de Segurança Pública (PPGDIRUFMA/CECGP). Psicóloga Clínica e Forense. artenirassilva@hotmail.com 2 Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Observatorium de Segurança Pública (PPGDIRUFMA/CECGP). Professora da Universidade Ceuma e Faculdade Cest. E-mail: madureira.amanda@gmail.com 3 Doutora em sociologia do departamento de comunicação II e ciências sociais na Universidade Rey Juan Carlos. Membro do grupo de pesquisa Methaodos.org. Atuais linhas de investigação: sociologia do gênero, sociologia do corpo e da saúde, sociologia da sexualidade, imigração e intercâmbio cultural e ainda novas tecnologias e inovação. Tem publicado em diversas revistas nacionais e internacionais de bom impacto científico. Email: almudena. manso@urjc.es

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