A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO PODER JUDICIÁRIO: DESAFIOS À EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA
Artenira
da Silva e Silva[1]
Kennya Regyna Mesquita Passos[2]
A
lei 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, inaugurou no ordenamento
jurídico brasileiro um sistema de proteção fundado no reconhecimento da
desigualdade de gênero como o cerne da problemática da violência contra a
mulher no âmbito doméstico e familiar, definia em seu art. 5º como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial”.
No
entanto a efetividade deste diploma legal esbarra na visão de mundo sexista,
machista e patriarcal que se perpetua na sociedade brasileira e que se reproduz
na atuação do Judiciário, refletindo-se diretamente na percepção das manifestações
de violência contra a mulher quando estas não se apresentam através de
agressões físicas, embora sejam rotineiras no universo das relações doméstica e
familiar, permanecendo invisibilizadas e consequentemente impunes, bem como na resistência
em reconhecer a condição de vulnerabilidade emocional e psicológica da mulher
vítima dessa espécie de violência.
Desta
forma, a fatos ocorridos no âmbito de relações albergadas pela Lei Maria da
Penha aplica-se a mesma lógica de análise dos fatos típicos ocorridos em
circunstâncias comuns, sem considerar as especificidades da violência de
gênero, o ciclo da violência doméstica, a vulnerabilidade da vítima e
perspectiva de prevenção de crimes mais graves como o feminicídio.
Ilustra
essa conclusão o seguinte trecho de sentença proferida pela Vara Especial de
Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher que absolveu sumariamente O acusado,
ex-marido da vítima, o qual a ameaçara de morte durante uma discussão: “[...] entendo que a conduta praticada pelo
acusado não se subsume ao tipo descrito no art. 147 do Código Penal, pois não houve intimidação suficiente da
vítima, a ponto de causar-lhe justo receio de sofrer mal injusto e grave, haja
vista se tratar tão somente de uma discussão de ânimos exaltados.”
(Grifamos)
Tal
entendimento demonstra claramente a tolerância social à violência contra a
mulher sendo reproduzida pelo Judiciário, que legitima o comportamento do
agressor em face de seu estado anímico e minimiza a potencialidade lesiva de
ameaças proferidas no âmbito de relações domésticas.
Por
outro lado, revela-se ainda a fragilidade técnica para compreender e enfrentar
a violência de gênero, haja vista que a decisão não distingue a análise da
conduta típica praticada em situação de violência doméstica contra a mulher e
uma conduta fora desse contexto, não havendo, pelo mesmo motivo, considerações
específicas acerca da condição de vulnerabilidade da vítima afim de determinar
o quanto se sentira ameaçada, afastando-se de plano a perspectiva protetiva,
repressiva e preventiva da Lei Maria da Penha.
Tal
lógica na atuação do Estado-juiz invisibiliza a violência psicológica e moral,
revitimiza a mulher que busca proteção no Judiciário, e tem como efeito
simbólico a legitimação da violência de gênero, contribuindo para a inefetividade
da Lei Maria da Penha e seu sistema protetivo.
Romper
com a violência simbólica dentro das estruturas do Poder Judiciário é um
desafio para o Estado, que só poderá ser alcançado através da qualificação
técnica sistemática e continuada de seus agentes.
Somente
com a mudança das percepções sociais acerca das problemáticas de gênero,
sobretudo dos agentes públicos, a Lei Maria da Penha poderá ser aplicada como
um novo paradigma no enfrentamento de todas as formas de violência contra a
mulher, contribuindo para a construção de uma sociedade em que mulheres e
homens possam estabelecer relações de respeito e igualdade.
[1]
Pós-doutora em Psicologia e Educação pela Universidade do Porto. Doutora em
Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Saúde e Ambiente
pela Universidade Federal do Maranhão, Graduada em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Departamento de
Saúde Pública e do Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da
Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora de linha de pesquisa do
Observatório Ibero Americano de Saúde e Cidadania e coordenadora do Observatorium de Segurança Pública
(PPGDIRUFMA/CECGP). Psicóloga Clínica e Forense. E-mail:
artenirassilva@hotmail.com
[2] Advogada. Mestranda do Programa de
pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade
Federal do Maranhão. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão - FAPEMA. Pós-graduada em Direito
Público pela Universidade Católica Dom Bosco. Contato:
kennyapassos@hotmail.com
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