ENFRENTAMENTO REAL DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA



4º TEXTO  DA SÉRIE DE ESTUDOS DE CASOS SOBRE A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA NO MARANHÃO

Artenira da Silva e Silva1 
José Márcio Maia Alves2

Observa-se que algumas anomalias no funcionamento das instituições do Sistema de Justiça levam à invisibilidade da resposta da Justiça à violência psicológica sofrida pelo gênero feminino, mesmo após a vigência da Lei Maria da Penha. Mais ainda, essas anomalias levam mesmo até à exclusão da consideração desse tipo de violência como evento provocador de uma persecução penal independente. Dentre essas anomalias, pontuam-se principalmente: uma sintomática carência de especialização dos operadores do direito em conhecimentos transdisciplinares ligados aos fenômenos intrínsecos ao feminismo e à defesa institucional do gênero feminino; a ausência de fluxos nos atendimentos das delegacias de defesa da mulher que apontem para o enfrentamento da ocorrência de ofensa à saúde psicológica da vítima independente de outros tipos de violência; a ausência de perquirição (conversão em diligência) acerca do acervo probatório indiciário da violência psicológica nos casos de violência doméstica que chegam ao Ministério Público; e, havendo indícios da violência psicológica na investigação policial e narração dela na fundamentação jurídica (fatos) da denúncia, a ausência da promoção da prova técnica – de preferência em produção antecipada de prova – para fundar uma cognição criminal exauriente a dar suporte a uma condenação. A obviedade da influência dessas anomalias, que se materializam nessa invisibilidade, aparece nos números do mapa da violência contra a mulher. Pesquisa mostra que em 2014, das notificações de violência contra a mulher lançadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) a partir de informações originárias do atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), depois da violência física, o tipo de violência sofrida pelas mulheres mais relatado foi a psicológica. Tomando-se como referência o público feminino de jovens e adultas em que é maior a incidência de violência praticada por cônjuges e ex-cônjuges (WAISELFISZ, 2015, p. 49), vê-se que 58,9% das jovens e 57,1% das adultas atendidas pelo serviço de saúde pública relataram ter sofrido violência física. A partir do mesmo número absoluto do qual se aferiu essa porcentagem, verifica-se que 24,5% das jovens e 26,6% das adultas relataram ter sofrido violência psicológica além da violência física, ou independente dela. (WAISELFISZ, 2015, p. 50). Esse percentual cai sensivelmente quando se falam de outras formas de violência: 

Pesquisa acerca do ano de 2004 da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) não destoa da verificação de alta incidência de informações acerca da violência psicológica sofrida e relatada pelas ofendidas. Naquele ano, 31,81% das mulheres atendidas relataram a violência psicológica como uma das ou a espécie exclusiva de violência sofrida, atrás apenas da violência física, que representou 51,68% dos relatos. (BRASIL, 2015, p. 9) Percebe-se, pois, que os eventos de violência psicológica existem e são vultosos. Além disso, a pesquisa mostra que, dos casos em que houve relatos de violência contra a mulher no atendimento do SUS, 46,2% dos que foram relatados por mulheres jovens foram encaminhados a instituições do Sistema de Justiça, assim como 46,1% dos casos relatados por adultas. Somando-se os encaminhamentos às delegacias especializadas em defesa da mulher e às delegacias gerais, tem-se 37,2% entre os 46,2% encaminhados, de relatos de violência feitos por mulheres jovens (80,5% dos casos), e 36% entre os 46,1% encaminhados, dos relatos feitos por adultas (78% dos casos). (WAISELFISZ, 2015, p. 53) De todos esses dados e de outros mostrados no estudo em questão, não há como se concluir, entretanto, que os casos que versavam sobre violência psicológica foram encaminhados na sua integridade para as delegacias de polícia. O que se pode concluir é que, ou por deficit de remessa dos casos de violência psicológica às delegacias, ou por falta de investigações concentradas também nessa espécie de violência ou por um deficit de formulação de denúncias que a tenham considerado como circunstância moduladora do elemento normativo do caput do art. 129, do Código Penal, o que é sintomático é que a violência psicológica não aparece nos números de condenações da Justiça como delito autônomo. Há estatísticas que mostram que a violência psicológica foi relatada nos processos, mas, como não há dados de condenações por lesão corporal em razão dela, tudo 20 indica que essa modalidade de violência tenha se servido apenas para atrair a competência das Varas de Proteção à Mulher. As estatísticas produzidas pelo Poder Judiciário se atêm a relatar os números de processos que tratam de Medidas Protetivas de Urgência, no bojo dos quais há relatos de violência psicológica. Exemplo disso é o levantamento estatístico da única Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de São Luís, capital do Estado do Maranhão. O lapso temporal da pesquisa refere-se aos meses de junho e de julho dos anos de 2012 e 2013. Os números referidos na pesquisa mostram que, dos processos que tramitaram naquela Vara naquele período e que se referiram a Medidas Protetivas de Urgência, 36% relataram violência psicológica em 2012 e 35% em 2013. Mais até do que os relatos de violência física, que ocuparam 26% em 2012 e 29% em 2013. (MARANHÃO, 2014, p. 25) Quanto aos números referentes às sentenças, vê-se que 91% delas foram “sentenças inibitórias” em 2012 e 92% em 2013. A pesquisa relata que essas sentenças têm o “objetivo de coibir o ato violento praticado pelo requerido”, contudo não se tratam de sentenças de mérito em que se vejam condenações por violência doméstica, e muito menos em que se possam aferir números acerca das condenações por lesões corporais com ofensa à saúde psíquica das ofendidas. A pesquisa não se ocupa desses dados. Eles são invisibilizados (Dados fornecidos pela Vara Especializada da Mulher e da Violência Doméstica de São Luís no Maranhão). Com pequena variação nos números, a tendência se repete na pesquisa de 2015 realizada e disponibilizada pela mesma Vara especializada, que teve os meses de janeiro a abril de 2014 como objeto de análise. (MARANHÃO, 2015, p. 28) Em pesquisas de dados realizadas em outros sítios eletrônicos, da mesma forma, não se verificam números acerca da condenação por lesão corporal por ofensa à saúde em razão de violência psicológica. O que desponta como factível é que há duas possibilidades de enfrentamento da violência psicológica na Justiça: a invisibilizada, de que não se têm dados e em que se a consideraria como fundamento para condenações por lesões corporais à saúde; e a mais comum, que a considera como mera circunstância que habilita a tramitação do processo segundo as regras da Lei Maria da Penha, mas para a persecução de um tipo criminal já previsto no Código Penal. Nessa última modalidade de abordagem, a invisibilidade da violência psicológica com motivador de condenações por lesões corporais puras, dentre outras coisas, indica a prática de comumente se ignorar a diferença entre violência psicológica e violência moral, que a própria LMP sugere ao diferi-las nos incisos II e V do seu art. 7º. É que esta última, por relacionar-se com os crimes de injúria, calúnia e difamação, trata de mácula das honras 21 subjetiva e objetiva da vítima e do grau de propagação dessa pecha. A violência moral gera um desconforto para a ofendida perante si ou outrem, que pode ou não gerar processos endêmicos de ofensa ao seu psiquismo. No entanto, cumpre destacar que em caso de a violência moral ocorrer de modo repetitivo e cíclico, é provável que ela se ajuste à modulação de violência psicológica aqui apresentada, uma vez que tenderá a desestruturar relações interpessoais profissionais, sociais ou familiares da vítima, minando sua autoestima e seu apoio social para o enfrentamento e denúncia da violência doméstica. Cumpre ressaltar ainda que violência psicológica pura é geralmente cíclica, apesar de frequentemente silenciosa, fulminando a autoestima, a segurança, a capacidade para o trabalho, o bem-estar e a qualidade de vida da vítima. Pode gerar um estado patológico em diversos níveis, tende a ser cronificada e extremamente destruidora porque geralmente é praticada por um agressor com quem a vítima manteve uma relação de afeto e de quem espera algum nível de respeito. A vinculação afetiva pretérita ou presente entre agressor e vítima comumente gera um sentimento de culpa da vítima em relação à violência sofrida, podendo contribuir para que ela questione inclusive sua sanidade mental. Fecha-se, assim, um ciclo torturante e doloroso de comprometimento da saúde da vítima de violência doméstica. Induvidoso que essa premissa conceitual faz emergir discrepâncias dos tipos de crimes contra a honra e até dos de ameaça – que são aferíveis por evento e são pontuados no tempo e no espaço – como os de lesão à saúde em razão de violência psicológica. Nestes, tratamse de resultados naturalísticos aferíveis no âmbito do psiquismo, mediante juízos de valor ou técnicos. Falam-se, como relata a Psicóloga Jurídica Sonia Rovinski, de sintomas como choque, negação, recolhimento, confusão, entorpecimento, medo, depressão, desesperança, baixa autoestima e negação, sendo o transtorno de estresse pós-traumático um dos quadros clínicopatológicos mais comuns. (MACHADO, 2013, p. 96). Em que pese a necessidade de diferir essas abordagens, o mais comum na Justiça ainda é o processamento de denúncias por crimes quase sempre de menor potencial ofensivo como injúria, calúnia, ameaça, constrangimento ilegal ou lesões leves, que tenham sido praticados “em contexto de violência doméstica”, servindo-se os elementos dos arts. 5º e 7º, da LMP – dentre eles a violência psicológica – para configurar essa circunstância que “autorizará” a aplicação dos benefícios à vítima de que trata a lei, e das medidas restritivas contra o agressor. Dificilmente se veem processos como a apelação criminal de n. 016782/2008- TJMA em que a Justiça condena o agressor por lesão corporal “configurada em sua forma psicológica”5 . (MARANHÃO, 2009) 5 Em que pese a 3ª Câmara Criminal do TJMA ter condenado o agressor expressa e unicamente pelo reconhecimento da violência psicológica a que submeteu a vítima em razão de “isolamento” e “limitação ao 22 A mudança desse estado de coisas só poderá ocorrer com o desenvolvimento de fluxos ainda na delegacia de polícia que ofereçam elementos indiciários básicos para que o órgão de Ministério Público, dotado de conhecimentos transdisciplinares afetos à teoria de gênero, possa formular ações penais com adequações típicas que tratem de lesões corporais à saúde psíquica da vítima de violência doméstica.


1 Pós-doutora em Psicologia e Educação pela Universidade do Porto. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Federal do Maranhão, Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Departamento de Saúde Pública e do Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora de linha de pesquisa do Observatório Ibero Americano de Saúde e Cidadania e coordenadora do Observatorium de Segurança Pública (PPGDIR/UFMA/CECGP). Psicóloga Clínica e Forense. Email: artenirassilva@hotmail.com 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Especialista em Direitos Difusos, Coletivos e Gestão Fiscal pela Escola Superior do Ministério Público do Maranhão. Promotor de Justiça. E-mail: josemarcio@mpma.mp.br 

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