CONTROVÉRSIAS SOBRE CONCESSÃO E EXTINÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA


3º TEXTO  DA SÉRIE DE ESTUDOS DE CASOS SOBRE A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA NO MARANHÃO

*Artenira da Silva' e Silva1 Lilah de Morais Barrêto2 

 As medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, possuem como finalidade primordial garantir a segurança pessoal e patrimonial da vítima e sua prole, de modo que exigem celeridade e eficiência para sua concessão e cumprimento. A lei estabelece o prazo de quarenta e oito horas para a autoridade policial encaminhar para o juiz expediente com o pedido da ofendida para a concessão das medidas (artigo 12, inciso III) e também fixa prazo idêntico para que o juiz conheça do expediente e decida sobre as mesmas (artigo 18, inciso I). Entretanto, na prática, estas medidas levam até meses para ser deferidas, em diversas localidades do país, o que acarreta insegurança à vítima ou mesmo o agravamento da violência neste ínterim. Conforme também já foi salientado, tanto a doutrina, quanto relatórios sobre o funcionamento das Delegacias e Juizados especializados apontam diversas dificuldades estruturais para que se atenda o grande volume da demanda. Embora não se desconsidere a relevância desses óbices e da necessidade de políticas públicas que ampliem a estrutura de atendimento, considera-se fundamental a análise de opções e interpretações processuais e procedimentais que acarretam morosidade e menor efetividade na aplicação dos institutos da Lei Maria da Penha. As medidas protetivas de urgência possuem natureza cautelar (DIAS, 2007; PORTO, 2012), podendo ser concedidas independente de audiência (artigo 19, § 1º). Como medidas cautelares, estão sujeitas aos requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora. Ocorre que alguns magistrados entendem que, para formar seu convencimento acerca destes requisitos, necessitam da designação de audiência prévia ou de justificação. A lei permite tal providência, porém cabe utilizá-la com extrema prudência e sopesamento dos bens jurídicos em conflito. Se por um lado, haverá restrição da liberdade do indigitado agressor, por outro, a demora na concessão da cautelar pode ocasionar a continuidade das violências sofridas, com a possibilidade de consequências desastrosas para a integridade da vítima e dos filhos. Cumpre ainda ressaltar a importância que a palavra da vítima possui em crimes desta natureza, vez que cometidos na maioria das vezes sem testemunhas, ou apenas na presença dos filhos menores, em ambiente doméstico e privado, cabendo ao juiz considerar estas especificidades ao formar seu convencimento. Outro aspecto que merece especial consideração é a distinção de audiência de justificação, para formação do convencimento do magistrado acerca da necessidade ou pertinência da medida pleiteada pela vítima, e audiência de conciliação entre as partes. Salienta Maria Berenice Dias (2007) que, além da preocupação de que a audiência de justificação ocorra dentro do menor prazo possível, o agressor não é citado nem intimado para comparecimento, haja vista se tratar de solenidade inaudita altera parte. A mesma autora acrescenta que após a apreciação da medida liminar, sendo esta deferida ou não, aí sim seria cabível no curso do processo, a audiência conciliatória. Sobre a finalidade desta audiência, assevera a autora: Claro que a finalidade não é induzir a vítima a desistir da representação e nem forçar a reconciliação do casal. É uma tentativa de solver consensualmente temas como guarda dos filhos, regulamentação das visitas, definição dos alimentos etc. Para audiência serão intimados a vítima, o ofensor e o Ministério Público. (2007, p. 144) No entanto, o que se verifica na prática de muitas instituições é que as medidas protetivas de urgência são tratadas como medidas compensatórias e suficientes para o deslinde das demandas, justificando-se tal prática na autonomia da vontade das vítimas, sem considerar sua vulnerabilidade, a obrigatoriedade de punição assumida pelo Estado nos tratados internacionais de Direitos Humanos das mulheres e a complementaridade das vertentes repressiva e promocional para erradicação da violência de gênero. Neste sentido, desprezando o aspecto punitivo e repressivo, encontra-se a análise do seguinte estudo sobre a comarca de Rio Grande (RS), por CELMER et al (2011, p. 102): Contudo, o que se depreende da análise dos casos em tela é que tais medidas estão sendo utilizadas como forma de resolver definitivamente o problema das agressões. Assim, em muitos casos, a intenção das vítimas sacia-se com o deferimento da medida protetiva como, por exemplo, a separação de corpos, inexistindo, destarte, razões para prosseguir com a representação criminal. Esta situação demonstra claramente que os conflitos envolvidos nas relações domésticas e familiares, em grande parte dos casos, em nada se assemelham aos casos genuinamente criminais, corroborando para a ineficácia do tratamento dado pelo Direito Penal à questão. Em sua análise, os autores prosseguem justificando as audiências preliminares como uma forma de evitar processos criminais, diminuir o problema da grande demanda. Deste modo, percebe-se que ocorre maior preocupação com o quantitativo de ações penais do que com a urgência da vítima para concessão da medida protetiva, além da negativa da obrigação estatal de reprimir a prática da violência: Entretanto, a referida lei não deixa claro quais os procedimentos a serem utilizados, motivo pelo qual se optou, na Comarca do Rio Grande, pela realização da chamada audiência preliminar, na qual ocorre a manifestação de vontade da vítima acerca do prosseguimento ou não da representação. Essa medida foi adotada em observância ao disposto no texto legal, que expressamente prevê que a renúncia à representação criminal somente poderá ser admitida em audiência com a presença do juiz e do membro do Ministério Público. Ocorre que, evidentemente, essa tratativa é mais uma forma de eliminar eventuais processos criminais, haja vista o número expressivo das demandas. (2011, p. 103) No mesmo sentido, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Mariana Craidy apresentam em seu trabalho posicionamento favorável à audiência prévia com o fim de conciliação e extinção da persecução criminal. Para tanto, transcreveram trecho da entrevista feita com a juíza que respondeu pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da comarca de Porto Alegre, entre maio de 2008 e setembro de 2009, no qual ela explica sua atuação: [...] Eu vou marcando as audiências sem esperar chegar o inquérito, porque se eu for esperar cinco meses ou um ano para chegarem os autos, o que vai acontecer com essas pessoas nesse meio tempo? Eu estou me desgastando para tentar atender com rapidez essas pessoas. Então se chega aqui dizendo que depois ele ficou bonzinho e a vítima diz que não quer mais o processo, eu aviso na delegacia, dependendo da situação, ou eu encaminho para o A.A.. Então eu aviso a delegada que aquele processo não tem mais possibilidade de punibilidade e ela não precisa mais fazer aquele inquérito. Então, o que eu faço aqui, o que eu consigo resolver aqui, a delegada não precisa fazer o inquérito lá [...] (2011, p. 30) Observando o entendimento da magistrada, resta evidente o seu desconhecimento dos princípios de Direito Humanos das Mulheres que informam a Lei Maria da Penha, da importância da vertente repressiva à violência de gênero, bem como da revitimização imposta à mulher quando o Estado trata a conduta criminosa como um problema menor, de cunho privado, a ser resolvido entre o casal. A magistrada ignora o ciclo próprio da violência doméstica e familiar contra a mulher, no qual a vítima se vê pressionada a perdoar e desistir da representação, como também se sente até mesmo culpada por ter buscado a proteção do Estado. Com a desistência, novos atos de violência costumam ocorrer, em uma espiral crescente, podendo chegar ao feminicídio. Interessante notar que a juíza afirma grande preocupação com a celeridade, porém adota procedimento que retarda a concessão de eventual medida protetiva, apesar de a lei ter tornado tal audiência prévia dispensável (artigo 19, § 1º). Percebe-se, portanto, que a insistência dos magistrados em manter o sistema de justiça consensual para esta forma de violência, apesar da clara ruptura que a Lei Maria da Penha realiza com este paradigma próprio da Lei nº. 9099/95, provoca morosidade e menor efetividade das medidas protetivas de urgência, bem como revitimização da mulher durante o processo. Desta feita, questões que a princípio diriam respeito somente às ações penais, também afetam a aplicação das medidas protetivas de urgência, vez que os aspectos promocional e criminal encontram-se imbricados. Um exemplo deste tipo de controvérsia é a que versa sobre a necessidade de representação da vítima para as ações penais por crime de lesão corporal. A matéria parecia encontrar-se no centro das divergências sobre a Lei Maria da Penha. Surgiram acórdãos estabelecendo que a vítima poderia se retratar da representação nos casos destes crimes e outros considerando a ação penal pública incondicionada. O Supremo Tribunal Federal, em seu informativo nº. 654, estabelece que a ação é pública incondicionada, vez que restaram definitivamente afastadas as disposições da Lei nº 9.099/95 (entendimento firmado na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19/DF, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4.424/DF, Reclamação nº. 17842/RS e Reclamação nº. 691135/DF). Esta discussão gerou o debate sobre a necessidade de haver ação penal ou inquérito policial em curso para que fossem concedidas as medidas protetivas de urgência. No Tribunal de Justiça do Maranhão, foram interpostos recursos pelo Ministério Público contra decisões de indeferimento e de declinação da competência em razão da inexistência de representação da vítima, de inquérito policial ou ação penal (v.g. Agravos de Instrumento nº. 25.226/2013, nº. 12086/2013, nº. 14574/2013, nº. 12.084/2013, Conflitos de Competência nº. 38.362/2013, nº. 43.260/2012). Em todos os processos mencionados, a jurisprudência do Tribunal de Justiça entendeu pela competência da Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e pela desnecessidade de existência de inquérito policial ou ação penal para concessão das tutelas de urgência da Lei Maria da Penha. No tocante à extinção do processo de medidas protetivas de urgência, verificam-se controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, haja vista que alguns defendem o prazo de trinta dias para decadência destas tutelas cautelares na hipótese de ausência de propositura de ação principal, cível ou criminal, por força do artigo 806 do Código de Processo Civil, outros que o prazo das medidas protetivas pode ser fixado ao prudente arbítrio do juiz (PORTO, 2012). Há ainda aqueles que defendem o entendimento de que estas medidas não ficariam sujeitas a prazo decadencial, por se tratar de cautelares de natureza satisfativa (DIAS, 2007). Registre-se que esta última tese encontra-se acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº. 1419421/GO. No Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, também é possível encontrar jurisprudência neste sentido (Ação Protetiva de Urgência nº. 39.910/2012). A Lei Maria da Penha trata com bastante rigor a execução das medidas protetivas de urgência, no sentido de garantir sua efetividade, o que se observa pela atenção à celeridade, com prazos exíguos para apreciação do pedido (artigo 18, inciso I) ; com a dispensa de audiência prévia (artigo 19, § 1º); com a previsão da competência para processamento, julgamento e execução pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (artigo 14); com a possibilidade de prorrogação, de substituição ou de concessão de novas medidas, segundo a necessidade de proteção da vítima (artigo 19, §§ 2º e 3º); extremo rigor com o seu descumprimento por parte do agressor, impondo para estes casos a sua prisão preventiva (nova hipótese de prisão preventiva prevista no artigo 42 da Lei Maria da Penha, porém esta foi alterada pela Lei nº. 12.403/2011, com o fim de incluir a vítima criança, adolescente, idoso, enfermo ou com deficiência, de modo que a possibilidade de prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, figura atualmente no artigo 313, inciso III, do Código de Processo Penal). Estes e vários outros dispositivos deste diploma legal demonstram a importância atribuída às medidas protetivas de urgência, assim como a primazia pela proteção da integridade da vítima, para rompimento com o ciclo de violência. No entanto, algumas práticas institucionais demonstram uma subutilização deste instituto, ora violando literalmente o dispositivo de lei, ora aplicando interpretação e procedimentos que restringem sua efetividade. 

1 Pós-doutora em Psicologia e Educação pela Universidade do Porto. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Federal do Maranhão, Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Departamento de Saúde Pública e do Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora de linha de pesquisa do Observatório Ibero Americano de Saúde e Cidadania e coordenadora do Observatorium de Segurança Pública (PPGDIRUFMA/CECGP). Psicóloga Clínica e Forense. E-mail: artenirassilva@hotmail.com 2 Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

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